terça-feira, 28 de agosto de 2012

Movimentos sociais e democracia participativa em Habermas

Marcio Renan Hamel*


Introdução

O presente trabalho tem por objetivo esboçar uma análise dos movimentos sociais enquanto modo de democracia participativa e sua contribuição acerca do desenvolvimento político e da emancipação social. Pode-se dizer, que a partir da década de 1980 os movimentos sociais mudaram substancialmente a constituição da esfera pública, onde somente os partidos políticos e as elites eram aptos a discutir as problemáticas sociais, em uma clara e evidente verticalização do poder no sentido de cima para baixo.

Com a ascensão dos movimentos sociais se inverte consideravelmente a lógica do poder político e do próprio poder dominante brasileiro, uma vez que a partir deste momento, as aspirações e demandas sociais das classes oprimidas começam a ganhar espaço de discussão na esfera pública por suas próprias manifestações.

Nesse sentido, para analisar a contribuição e a importância dos movimentos sociais enquanto forma de democracia participativa será utilizado o referencial teórico da política deliberativa de Jürgen Habermas, a fim de se justificar a viabilidade dos procedimentos democráticos participativos em meio ao contexto das sociedades do século XXI.

2. A Política Deliberativa em Habermas: o novo papel do Direito e da Democracia

Habermas reintroduz a questão democrática através de um aspecto participativo e social, em que todos os cidadãos podem ter oportunidade de expressão. O filósofo alemão, por meio da razão comunicativa torna possível o medium lingüístico, “através do qual as interações se interligam e as formas de vida se estruturam” (2003, v. I, p. 20).

Habermas aponta para a necessidade de se garantir aos cidadãos direitos de comunicação e direitos de participação política visando, inclusive, a própria legitimidade do processo legislativo, explicando que

na medida em que os direitos de comunicação e de participação política são constitutivos para um processo de legislação eficiente do ponto de vista da legitimação, esses direitos subjetivos não podem ser tidos como os de sujeitos jurídicos privados e isolados: eles têm que ser apreendidos no enfoque de participantes orientados pelo entendimento, que se encontram numa prática intersubjetiva de entendimento (HABERMAS, 2003, v. I, p. 53).

Já que a vontade legítima emana de cidadãos que passam a ser parceiros do direito e da própria democracia, e não somente meros espectadores das questões jurídico-políticas, é que o processo legislativo passa, então, a ser espaço de integração social, pois, segundo Habermas é “uma vontade legítima, que resulta de uma autolegislação presumivelmente racional de cidadãos politicamente autônomos” (2003, v. I, p. 54). Habermas vê o processo legislativo como meio de integração social, pelo fato de que é dado espaço a todos os cidadãos – mulheres, negros, minorias raciais, trabalhadores – para que, através dos direitos de comunicação e participação política, tornem-se politicamente autônomos, podendo então discutir, na esfera pública, os seus problemas e as suas necessidades.

Em Direito e Democracia, Habermas propõe que os fundamentos normativos do Estado Democrático de Direito sejam vistos como resultado de procedimentos deliberativos, iniciados pelos cidadãos, com a intenção de criar uma associação de participantes do direito, de forma livre e igual.

Os problemas centrais das sociedades no contexto do século XXI referem-se ao multiculturalismo, ao respeito aos direitos humanos e, também, à inclusão social de minorias. “Habermas aboga por una política del reconocimento de los individuos pertenecientes a esos grupos culturales en el marco común de una democracia deliberativa y participativa” (ARROYO, 2000, p. 204). Assevera Arroyo que o objetivo central de Habermas está em estabelecer direitos coletivos para assegurar as pretensões de reconhecimento das identidades coletivas e as demandas de igualdade formadas pelas referidas minorias culturais.

Arroyo entende que o problema prático está justamente no modo de conceber uma estrutura política baseada em princípios universalistas com o reconhecimento do pluralismo cultural. Para tal feito, haveria necessidade de se implementar formas de organização política que encarassem a diversidade cosmopolita. Para tanto,

las libertades de opinión y de expresión no son sólo derechos de protección de la esfera individual, sino que sobre todo cumplen una función esencial en el proceso democrático de formación de la voluntad. El estabelecimiento de un modelo político de reconocimiento universal de las diferentes culturas no uede ser ele resultado de una imposición. Su mantenimiento estable dependerá, más bién, de la calidad democrática de los processos de deliberación y decisión (ARROYO, 2000, p. 211).

Nesse sentido, só será legítimo “aquilo em torno do qual os participantes da deliberação livre podem unir-se por si mesmos, sem depender de ninguém – portanto, aquilo que encontra assentimento fundamentado de todos sob as condições de um discurso racional” (HABERMAS, 2003, p. 162).[1]

Através dessa proposição, Habermas entende possível que os participantes se comprometam a assumir o direito moderno como um medium para regular sua convivência. Pode-se dizer, inclusive, que Habermas resgata o conceito de autonomia elaborado por Kant, ao passo que não considera ninguém livre se não houver autonomia política, ficando o cidadão impedido de gozar de igual liberdade sob as leis que todos os cidadãos propuseram a si mesmos. Por essa razão

o processo legislativo democrático precisa confrontar seus participantes com as expectativas normativas das orientações do bem da comunidade, porque ele próprio tem que extrair sua força legitimadora do processo de um entendimento dos cidadãos sobre sua regra de convivência. Para preencher a sua função de estabilização das expectativas nas sociedades modernas, o direito precisa conservar um nexo interno com a força socialmente integradora do agir comunicativo (HABERMAS, 1997. v. I., p. 115).

A partir dessa proposição habermasiana pode-se afirmar que, para a ocorrência deste arranjo participativo, torna-se necessária a política deliberativa entre os sujeitos de direito, sendo essencial, para tanto, o desenvolvimento de métodos e condições de debate e discussão. Com efeito, a participação social na discussão é fundamental para a formulação do processo de participação, pois, de acordo com Habermas

a participação simétrica de todos os membros exige que os discursos conduzidos representativamente sejam porosos e sensíveis aos estímulos, temas e contribuições, informações e argumentos fornecidos por uma esfera pública pluralista, próxima à base, estruturada discursivamente, portanto, diluída pelo poder (2003, v. I, p. 227-228).

Dessa maneira, Habermas aponta para a necessidade dos cidadãos deliberarem a respeito de seus problemas e de suas demandas sociais, como também para a exigência da opinião pública direcionar o poder administrativo ao atendimento de determinadas demandas sociais. O autor demonstra, também, que o conceito de discurso, incluído na democracia, torna a sociedade diferenciada, a partir do momento em que permite contrastar opiniões, proporcionando a contestação e a identificação das necessidades existentes no seu interior, podendo, ainda, apontar possíveis soluções para determinados problemas sociais.

3. A Democracia Participativa a partir dos Movimentos Sociais

Considerando a abordagem da política deliberativa em Habermas e, principalmente, da defesa do autor de que a esfera pública é o espaço de todos os cidadãos – mulheres, negros, minorias raciais, trabalhadores – para que, através dos direitos de comunicação e participação política, tornem-se politicamente autônomos, podendo então discutir, publicamente, os seus problemas e as suas necessidades, pode-se situar os movimentos sociais como um canal necessário para tais reivindicações.

A chamada contra-opressão pode ser expressa por lutas violentas ou não, reivindicações, pressões, apatia ou mesmo alienação, sendo que “quando os grupos se organizam na busca de libertação, ou seja, para superar alguma forma de opressão e para atuar na produção de uma sociedade modificada, podemos falar na existência de um movimento social” (SCHERER-WARREN, 1989, p. 09). Scherer-Warren define os movimentos sociais como sendo

uma ação grupal para transformação (a práxis) voltada para a realização dos mesmos objetivos (o projeto), sob a orientação mais ou menos consciente de princípios valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (a organização e sua direção) (SCHERER-WARREN, 1989, p. 20).

Também se pode dizer que movimentos sociais são “ações sociais coletivas de caráter sócio-político e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas” (GOHN, 2003, p. 13). Enfim, trata-se, sem dúvida, de um agir comunicativo, em que as ações coletivas são discutidas na esfera pública a partir dessa comunicabilidade.

De acordo com Maria da Glória Gohn (2003, p. 18) há um novo projeto emancipatório e civilizatório por detrás dessa concepção que tem como horizonte uma sociedade democrática sem injustiças sociais. É inegável que o processo de democratização ocorreu e ocorre pelo desempenho dos movimentos sociais, posto que a própria redefinição da democracia emergiu de tal luta. A partir das reivindicações dos movimentos sociais se vê expressada, também, a pluralidade de interesses, fator tão importante hoje em sociedades cada vez mais heterogêneas e multiculturais, onde ainda também se encontra o confronto da luta de classes, o qual fora tão combatido por Marx.

O direito de participar, defendido por Habermas, é o que, segundo Dagnino define a invenção de uma nova sociedade, sendo que

práticas políticas recentes inspiradas pela nova cidadania, tais como as que surgem nas cidades governadas pelo Partido dos Trabalhadores/Frentes Populares, onde os setores populares e suas organizações abriram espaço para o controle democrático do Estado mediante a participação efetiva dos cidadãos no poder, ajudam a visualizar possibilidades futuras (DAGNINO, 2000, p. 87).

Através da participação política os cidadãos alcançam a sua autonomia, tão importante para a emancipação social. Segundo Gohn (2003, p. 30) a participação é um processo de vivência que imprime sentido e significado a um movimento social, desenvolvendo uma consciência crítica e gerando uma cultura política nova. A defesa da democracia participativa a partir dos movimentos sociais como critério legitimador da própria democracia e como canal de manifestações das classes oprimidas é uma necessidade do Estado Democrático de Direito, bem como uma clara e evidente forma de desenvolvimento.

Por isso, “um projeto político é democrático quando não se reduz a um conjunto de interesses particulares de um grupo, organização ou movimento” (GOHN, 2005, p. 36-37). Necessário para ser democrático é incorporar a visão do outro e do universal. A partir dos movimentos sociais há uma ruptura com a tradição paternalista de apropriação das reivindicações populares e também para com a tradição clientelista, onde os cidadãos passam a ser os próprios agentes da construção democrática.

É um novo cenário da sociedade civil onde o espaço público passa a ser ocupado por atores que anteriormente não tinham tal espaço e, sequer, tinham o direito de reivindicar ante o Estado, mas que a partir deste momento serve como canal de expressão e atendimento das demandas sociais populares. Por isso

a cidadania se constrói pela participação direta e indireta dos cidadãos, enquanto sujeitos políticos, não apenas para a solução de seus problemas sentidos, sem espaços públicos onde as decisões coletivas possam ser cumpridas, mas também para um processo de radicalização democrática, através do desempenho instituinte, transformador da própria ordem na qual operam (BAIERLE, 2000, p. 192).

A fim de exemplificação de que a democracia participativa aliada ao direito de participação dos cidadãos através dos movimentos sociais são fatores importantes para o desenvolvimento social, cita-se o caso da influência dos Movimentos Populares Urbanos (MPUs) na cidade de Porto Alegre/RS, onde a participação popular na definição de prioridades e critérios para o orçamento municipal foi pautada pelo Orçamento Participativo (OP), cuja estrutura é baseada em três princípios:

(a) participação aberta a todos os cidadãos, sem nenhum status especial atribuído às organizações comunitárias; (b) combinação de democracia direta e representativa, cuja dinâmica institucional atribui aos próprios participantes a definição das regras internas; e, (c) alocação dos recursos para investimento de acordo com uma combinação de critérios gerais e técnicos (ou seja, compatibilizando as decisões e as regras estabelecidas pelos participantes com as exigências técnicas e legais da ação governamental, respeitadas também as limitações financeiras) (BAIERLE, 2000, p. 199).

Segundo destaca Baierle (2000), com a implementação do Orçamento Participativo na cidade de Porto Alegre, entre saneamento básico, pavimentação, abastecimento de água e coleta de lixo para quase toda a população, remodelando as vilas populares, referendou a cidade como a capital de melhor qualidade de vida do Brasil. Ao se constatar que a participação popular influenciou diretamente na remodelação da cidade, não esquecendo que isto foi feito de forma conjunta com Poder Público, mas garantindo o direito de participação dos cidadãos, torna-se inegável que tal procedimento democrático é uma visível forma de desenvolvimento social.

Essa conseqüência é atribuída ao sucesso da experiência dos Movimentos Populares Urbanos, em que a consciência democrática da participação popular proporciona o espaço de ação necessário às reivindicações dos setores populares na esfera pública. De acordo com Baierle (2000, p. 211) tal experiência permite afirmar a emergência de um novo princípio ético-político através do surgimento de um cidadão de novo tipo, não mais o clientelista de outrora, mas participativo e parceiro da gestão pública.

Conclusão

Com o presente estudo, procurou-se mostrar, primeiro, que a política deliberativa proposta por Habermas é essencial e viável no interior do Estado Democrático de Direito e, segundo, que a política deliberativa exercida através de uma democracia participativa pode ser exercida, também, a partir dos movimentos sociais.

A ênfase dos movimentos sociais na atualidade demonstra que pela primeira vez na história do Brasil, as classes oprimidas e desprivilegiadas do sistema político, as quais sempre foram tratadas de forma clientelista a espera de “favores” das classes dominantes, agora vêem na participação democrática popular um canal para expressar suas demandas na esfera pública, o que se traduz sem dúvida em um agir comunicativo.

Mais do que deliberarem acerca de seus problemas, exigirem o reconhecimento de minorias, reivindicarem melhorias substanciais em suas condições de vida, os movimentos sociais estão marcando, sensivelmente, sua atuação na política brasileira com um novo e grande passo na democracia rumo à consolidação de práticas democráticas participativas, como alternativa para o desenvolvimento social e político do país, redefinindo o papel da democracia e do Estado Democrático de Direito.


Bibliografia

ARROYO, Juan Carlos Velasco. La teoría discursiva del derecho: sistema jurídico y democracia en Habermas. Prólogo de Javier Muguerza. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales/Boletín Oficial del Estado, 2000.

BAIERLE, Sérgio Gregório. A explosão da experiência: emergência de um novo princípio ético-político nos movimentos populares urbanos em Porto Alegre. In: ALVAREZ, Sonia E.; DAGNINO, Evelina. et al. (org) Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: UFMG, 2000.

DAGNINO, Evelina. Cultura, cidadania e democracia: a transformação dos discursos e práticas na esquerda latino-americana. In: ALVAREZ, Sonia E.; DAGNINO, Evelina. et al. (org) Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: UFMG, 2000.

GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais no início do século XXI: antigos e novos atores sociais. Petrópolis/RJ: Vozes, 2003.

GOHN, Maria da Glória. O protagonismo da sociedade civil: movimentos sociais, ONGs e redes solidárias. São Paulo: Cortez, 2005.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I e II Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

HABERMAS, Jürgen. Era das transições. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

SCHERER-WARREN, Ilse. Movimentos sociais: um ensaio de interpretação sociológica. 3. ed. Florianópolis: UFSC, 1989.

* Bacharel em Direito pela UPF, Advogado, Bacharel em Filosofia pela UPF, Especialista em Direito Privado UNIJUÍ, Mestre em Desenvolvimento UNIJUÍ, professor de Hermenêutica e Argumentação Jurídica, Introdução e Teoria Geral do Direito pela UPF/RS, professor pesquisador do Grupo de Pesquisa no CNPQ - Democracia, Estado de Direito e Cidadania da Universidade Federal Fluminense, Estado do Rio de Janeiro, Brasil. marcio@upf.br

Uma introdução a Pierre Bourdieu


Pela discussão do gosto, Bourdieu denunciou as distorções na produção da cultura e na sua difusão educacional
Maria da Graça Jacintho Setton
Considerado um dos maiores sociólogos de língua francesa das últimas décadas, Pierre Bourdieu é um dos mais importantes pensadores do século 20. Sua produção intelectual, desde a década de 1960, estende-se por uma extensa variedade de objetos e temas de estudo. Embora contemporâneo, é tão respeitado quanto um clássico. Crítico mordaz dos mecanismos de reprodução das desigualdades sociais, Bourdieu construiu um importante referencial no campo das ciências humanas.
No entanto, mesmo sendo reconhecida pela originalidade, a obra de Bourdieu é objeto de grande controvérsia. A maior parte de seus críticos, numa leitura parcial de seus trabalhos, classifica-o como um teórico da reprodução das desigualdades sociais. Não obstante, a reflexão de Bourdieu se destaca por uma singularidade. Para ele, os condicionamentos materiais e simbólicos agem sobre nós (sociedade e indivíduos) numa complexa relação de interdependência. Ou seja, a posição social ou o poder que detemos na sociedade não dependem apenas do volume de dinheiro que acumulamos ou de uma situação de prestígio que desfrutamos por possuir escolaridade ou qualquer outra particularidade de destaque, mas está na articulação de sentidos que esses aspectos podem assumir em cada momento histórico.
Para o autor, a sociologia deve aproveitar sua vasta herança acadêmica, apoiar-se nas teorias sociais desenvolvidas pelos grandes pensadores das ciências humanas, fazer uso de técnicas estatísticas e etnográficas e utilizar procedimentos metodológicos sérios e vigilantes para se fortalecer como ciência. Bourdieu fez de sua vida acadêmica e intelectual uma arma política e de sua sociologia uma sociologia engajada, profundamente comprometida com a denúncia dos mecanismos de dominação em uma sociedade injusta. De acordo com sua perspectiva, a sociedade ocidental capitalista é uma sociedade hierarquizada, organizada segundo uma divisão de poderes extremamente desigual. Mas como se organizaria essa distribuição desigual de poderes? Como as formações sociais capitalistas conseguem manter os grupos sociais e os indivíduos hierarquizados? Em outras palavras, como se perpetua uma situação de dominação entre os grupos sociais?
Concepção relacional da sociedade
É possível afirmar que Bourdieu tem uma concepção relacional e sistêmica do social. A estrutura social é vista como um sistema hierarquizado de poder e privilégio, determinado tanto pelas relações materiais e/ou econômicas (salário, renda) como pelas relações simbólicas (status) e/ou culturais (escolarização) entre os indivíduos. Segundo esse ponto de vista, a diferente localização dos grupos nessa estrutura social deriva da desigual distribuição de recursos e poderes de cada um de nós. Por recursos ou poderes, Bourdieu entende mais especificamente o capital econômico (renda, salários, imóveis), o capital cultural (saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos), o capital social (relações sociais que podem ser revertidas em capital, relações que podem ser capitalizadas) e por fim, mas não por ordem de importância, o capital simbólico (o que vulgarmente chamamos prestígio e/ou honra). Assim, a posição de privilégio ou não-privilégio ocupada por um grupo ou indivíduo é definida de acordo com o volume e a composição de um ou mais capitais adquiridos e ou incorporados ao longo de suas trajetórias sociais. O conjunto desses capitais seria compreendido a partir de um sistema de disposições de cultura (nas suas dimensões material, simbólica e cultural, entre outras), denominado por ele habitus.
A sociologia, para Bourdieu, é uma ciência que incomoda, pois tende a interpretar os fenômenos sociais de maneira crítica. Para os interesses desta introdução, vejamos apenas uma de suas muitas contribuições no campo da Sociologia da Cultura; mais especificamente, a maneira pela qual Bourdieu interpreta a formação do gosto cultural de cada um de nós, pondo em xeque um dos consensos mais difundidos de nossa história cultural, o de que gosto não se discute.
A produção do gosto
Posto isso, a sociologia de Bourdieu é mais que uma sociologia da reprodução das diferenças, materiais ou econômicas; é uma sociologia interpretativa do jogo de poder das distinções econômicas e culturais de uma sociedade hierarquizada. Aqui chamo atenção para um aspecto de sua obra relativa à interpretação da produção do gosto cultural. Bourdieu considera que o gosto e as práticas de cultura de cada um de nós são resultados de um feixe de condições específicas de socialização. É na história das experiências de vida dos grupos e dos indivíduos que podemos apreender a composição de gosto e compreender as vantagens e desvantagens materiais e simbólicas que assumem.
Nas décadas de 60 e 70 do século passado, Bourdieu se envolve em uma série de pesquisas de caráter qualitativo e quantitativo sobre a vida cultural, sobre as práticas de lazer e de consumo de cultura entre os europeus, sobretudo, entre os franceses.
Dessas experiências de investigação Bourdieu publica, em 1976, uma grande pesquisa intitulada Anatomia do gosto. Mais tarde, essa mesma pesquisa passa a ser objeto de publicação de sua obra prima, lançada em 1979: o livro intitulado A distinção – crítica social do julgamento. Nessas duas obras, Bourdieu e uma equipe de pesquisadores tentam explicar e discutir a variação do gosto entre os segmentos sociais. Isto é, analisando a variedade das práticas culturais entre os grupos, Bourdieu acaba por afirmar que o gosto cultural e os estilos de vida da burguesia, das camadas médias e do operariado, ou seja, as maneiras de se relacionar com as práticas da cultura desses sujeitos, estão profundamente marcadas pelas trajetórias sociais vividas por cada um deles.
Mais especificamente Bourdieu afirma que as práticas culturais são determinadas, em grande parte, pelas trajetórias educativas e socializadoras dos agentes. Dito com outras palavras, Bourdieu afirma, causando um grande mal-estar na época, que o gosto cultural é produto e fruto de um processo educativo, ambientado na família e na escola e não fruto de uma sensibilidade inata dos agentes sociais.
“Capital cultural incorporado”
Nesse sentido, Bourdieu põe em discussão, desafiando várias autoridades, um consenso muito em voga, relativo à crença de que gosto e os estilos de vida seriam uma questão de foro íntimo. Para o autor, o gosto seria, ao contrário, o resultado de imbricadas relações de força poderosamente alicerçadas nas instituições transmissoras de cultura da sociedade capitalista.
Para fundamentar essa afirmação, Bourdieu argumenta que essas instituições seriam a família e a escola; seriam elas responsáveis pelas nossas competências culturais ou gostos culturais. De um lado, chamou a atenção para o aprendizado precoce e insensível, efetuado desde a primeira infância, no seio da família, e prolongado por um aprendizado escolar que o pressupõe e o completa (aprendizado mais comum entre as elites). De outro, destacou os aprendizados tardio, metódico e acelerado, adquiridos nas instituições de ensino, fora do ambiente familiar, em tese um conhecimento aberto para todos.
Assim, a distinção entre esses dois tipos de aprendizado, o familiar e o escolar, refere-se a duas maneiras de adquirir bens da cultura e com eles se habituar. Ou seja, os aprendizados efetuados nos ambientes familiares seriam caracterizados pelo seu desprendimento e invisibilidade, garantindo a seu portador um certo desembaraço na apreensão e apreciação cultural; por sua vez, o aprendizado escolar sistemático seria caracterizado por ser voluntário e consciente, garantindo a seu portador uma familiaridade tardia com a produção cultural.
Essas duas formas de aprendizado, segundo Bourdieu, seriam responsáveis pela formação do gosto cultural dos indivíduos. Seria, especificamente, o que se chamaríamos de “capital cultural incorporado”, uma dimensão do habitus de cada um; uma predisposição a gostar de determinados produtos da cultura, por exemplo, filmes, livros ou musica, consagrados ou não pela cultura culta; uma tendência desenvolvida em cada um de nós, incorporada e que supõe uma interiorização e identificação com certas informações e/ou saberes; um capital, enfim, em uma versão simbólica, transvertido em disposições de cultura, portanto, fruto de um trabalho de assimilação, conquistado a custa de muito investimento, tempo, dinheiro e desembaraço no caso dos grupos privilegiados.
O descompasso educacional
Seria pertinente perguntar: qual o significado dessas contribuições de Bourdieu para a interpretação das culturas? Qual o significado da perspectiva crítica sobre a produção do gosto cultural nas sociedades capitalistas?
Para responder a essa questão, valeria fazer uma pequena digressão. É sabido, entre os sociólogos da educação, que todas as relações educativas e socializadoras são relações de comunicação. Isto é, a mensagem comunicativa, mais propriamente o conjunto de regras culturais disponibilizadas pela escola, sobretudo aquelas relativas às artes eruditas ou à cultura letrada dependem da posse prévia de códigos de apreciação. Em outras palavras, a sensibilidade estética, a capacidade de assimilar e se identificar com um objeto artístico dependem fundamentalmente do acesso e, sobretudo, de um aprendizado prévio de códigos e instrumentos de apropriação, isto é, uma sensibilização anterior, normalmente conquistada no seio familiar.
Ora, diria Bourdieu, em uma sociedade hierarquizada e injusta como a nossa, não são todas as famílias que possuem a bagagem culta e letrada para se apropriar e se identificar com os ensinamentos escolares. Alguns, os de origem social superior, terão certamente mais facilidade do que outros, pois já adquiriram parte desses ensinamentos em casa. Existiria uma aproximação e uma similaridade entre a cultura escolar e a cultura dos grupos sociais dominantes, pois estes há muitas gerações acumulam conhecimentos disponibilizados pela escola. Nesse sentido, o sistema de ensino que trata a todos igualmente, cobrando de todos o que só alguns detêm (a familiaridade com a cultura culta), não leva em consideração as diferenças de base determinadas pelas desigualdades de origem social. Bourdieu detecta então um descompasso entre a competência cultural exigida e promovida pela escola e a competência cultural apreendida nas famílias dos segmentos mais populares.
Em síntese, para Bourdieu o sistema escolar, em vez de oferecer acesso democrático de uma competência cultural específica para todos, tende a reforçar as distinções de capital cultural de seu público. Agindo dessa forma, o sistema escolar limitaria o acesso e o pleno aproveitamento dos indivíduos pertencentes às famílias menos escolarizadas, pois cobraria deles os que eles não têm, ou seja, um conhecimento cultural anterior, aquele necessário para se realizar a contento o processo de transmissão de uma cultura culta. Essa cobrança escolar foi denominada por ele como uma violência simbólica, pois imporia o reconhecimento e a legitimidade de uma única forma de cultura, desconsiderando e inferiorizando a cultura dos segmentos populares.
Assim, convertendo as desigualdades sociais, ou seja, as diferenças de aprendizado anterior, em desigualdades de acesso à cultura culta, o sistema de ensino tende a perpetuar a estrutura da distribuição do capital cultural, contribuindo para reproduzir e legitimar as diferenças de gosto entre os grupos sociais. Posto isso, as disposições exigidas pela escola, como por exemplo, as sensibilidades pelas letras ou pela estética visual ou musical, enfim, uma estética artística, privilégio de alguns poucos, tendem a intensificar as vantagens daqueles mais bem aquinhoados, material e culturalmente.
Distinções do gosto
Com esse argumento Bourdieu põe em discussão um dos maiores consensos do século, qual seja, gosto não se discute. Ao contrário, para ele o gosto não é uma propriedade inata dos indivíduos. O gosto é produzido e é resultado de um feixe de condições materiais e simbólicas acumuladas no percurso de nossa trajetória educativa. Para ele, o gosto cultural se adquire; mais do que isso, é resultado de diferenças de origem e de oportunidades sociais e, portanto, deve ser denunciado enquanto tal.
Nesse sentido, as distinções do gosto cultural revelam, sobretudo, uma ordem social injusta, em que as diferenças de cultura de origem podem ser transubstanciadas em diferenças entre o bom e o mau gosto numa permanente estratégia de classificar hierarquicamente a cultura dos segmentos sociais.
Para finalizar, seria interessante fazer algumas ressalvas a esse pensamento. Pierre Bourdieu é ainda hoje respeitado como um dos fundadores do paradigma teórico acerca das práticas de cultura. Não obstante, uma série de trabalhos vem tentando atualizar suas contribuições, admitindo a existência de outros espaços transmissores e legitimadores de um gosto cultural. Entre eles podemos destacar o poder das mídias ou, no caso especifico dos jovens, seus grupos de pares. Nas sociedades modernas, portanto, uma gama complexa de referências de cultura partilharia com a escola e a família a formação do gosto de todos os segmentos sociais.
Maria da Graça Jacintho Setton é professora de Sociologia na Faculdade de Educação da USP, autora de Rotary Club: habitus, estilo de vida e sociabilidade (Ed. Annablume) e organizadora dos artigos de Bourdieu reunidos em A produção da crença: uma contribuição para uma teoria dos bens simbólicos (Ed. Zouk).

Bourdieu e a Midia

"A TV precisa de um contrapoder"

(Copyright Jornal do Brasil, caderno Idéias, 11/9/00)

"Pierre Bourdieu, titular da cátedra de Sociologia do Collège de France, é um dos mais lidos e citados sociólogos do mundo. Com seu livro Sobre a televisão (Jorge Zahar Editor), ele abriu uma nova e polêmica frente de discussão ao estudar a cultura mediática e fazer uma crítica definitiva ao meio de comunicação mais controvertido da atualidade. Para ele, a tela da televisão tornou-se hoje ‘uma espécie de espelho de Narciso, um lugar de exibição narcísica no qual querem se mirar os intelectuais (filósofos e escritores) mediáticos’, do qual fogem os eruditos e pensadores, evitando uma mídia extremamente superficial, própria a fast thinkers. Bourdieu acha que pouca coisa pode ser dita num veículo que impõe o assunto, o tempo irrisório e que tem interesses econômicos invisíveis e, muitas vezes, inconfessáveis. Tudo isso faz da televisão, segundo Bourdieu, um formidável instrumento de manutenção da ordem simbólica.

‘Há imensos obstáculos... Penso que já seria importante que os intelectuais tomem consciência de que, em sua relação com a televisão, o que está em jogo não é apenas seu ego, sua notoriedade atual ou potencial, mas algo infinitamente mais importante politicamente: a possibilidade de instituir um contra-poder crítico eficaz, capaz de se exprimir em nome do maior número de pessoas, as conquistas mais sofisticadas e mais avançadas da pesquisa científica e artística ou, mais simplesmente, a possibilidade de oferecer a todos os homens e mulheres de todos os países um acesso mínimo aos produtos mais raros e mais nobres da reflexão humana.’ Segundo Bourdieu, a construção deste contra-poder só pode ser feita com a cumplicidade e a participação ativa da fração mais esclarecida e mais independente dos jornalistas. Suas idéias foram criticadas tanto na França como em todo o mundo onde o livro foi publicado. Por isso, Bourdieu escreveu uma espécie de réplica, não por acaso intilulada Contra-fogos. Como a discussão está longe de acabar, no mês em que a TV brasileira comemora seus 50 anos, o Idéias voltou a Bourdieu para discutir seu tema mais polêmico: a mídia televisiva.

O jornalismo é importante demais para ser deixado nas mãos de jornalistas?

Pierre Bourdieu – Se eu disse alguma coisa assim, em algum lugar, foi unicamente pelo prazer de fazer uma boutade. E é preciso evitar fazer tiradas sobre assuntos sérios: e o jornalismo é um assunto sério, muito sério mesmo. Porque o jornalismo, hoje, é efetivamente muito importante. O que eu quis dizer é que não se pode deixar unicamente aos jornalistas a total e inteira responsabilidade do trabalho jornalístico. Era o que queriam alguns jornalistas que pensam que são suficientemente grandes para se controlar e se criticar e têm sempre à mão, pelo menos na França, a referência à ‘deontologia’. O jornalismo – que se pensa como um ‘quarto poder’, mas crítico – é sem dúvida alguma um poder, que, pelo fato das pressões de todas as ordens que pesam sobre a atividade jornalística, sobre os jornalistas, portanto, não tem mais muita coisa de crítico e contribui muito para reforçar as forças mais conservadoras da economia e da política.

O senhor pode dar um exemplo?

Bourdieu – Os jornalistas econômicos, que na sua maioria estão longe de serem grandes economistas, e os grandes editorialistas não cessam de retomar e orquestrar os argumentos mais deformados da vulgata neoliberal sem submetê-los à crítica mais elementar. Por acaso eles se perguntam, por exemplo, o que significam as taxas de emprego dos Estados Unidos e da Inglaterra e se a relação, freqüentemente lançada contra os defensores do Welfare State, entre a proteção social e o desemprego não repousa sobre um jogo com as definições, tanto da proteção social, quanto do desemprego e do emprego etc.? Os jornalistas influentes gostam de dizer que são escutados, temos de lhes dar razão. Quando se trata de economia, eles falam todos praticamente a mesma língua.

O jornalismo da TV é pior do que o da imprensa escrita dita séria?

Bourdieu – Eu não colocaria a questão nesses termos. É verdade, para simplificar, que o jornalismo da TV (sobretudo nas grandes redes, de grandes espetáculos e grande público) está submetido a pressões (a da urgência, principalmente, ligada ao medo de entediar, isto é, de perder telespectador), uma coisa da qual o jornalismo escrito, o dos grandes jornais ditos ‘sérios’, está livre. Mas, de fato, a concorrência no campo jornalístico – incluídas todas as mídias – faz com que as pressões e interesses que pesam sobre a televisão pesem também, por intermédio da televisão, sobre a totalidade dos jornais, mesmo sobre aqueles mais preocupados com sua autonomia. Patrick Champagne fez essa análise, num dos últimos números da revista Atos da pesquisa em ciências sociais, sobre a evolução da retórica jornalística do jornal Le Monde: os títulos da primeira página, por exemplo, estão sendo cada vez mais dedicados à política nacional e aos aspectos mais anedóticos dessa política – por exemplo as relações de coabitação entre o presidente da República e o primeiro-ministro. E tudo o que os americanos chamam de ‘agenda’ – os assuntos sobre os quais é preciso falar, os temas que devem ser debatidos – é imposto, cada vez mais, pela televisão. Ou, então, os grandes jornalistas se empenham em ter um programa de TV ou em aparecer num, o que é bom para eles próprios, para sua notoriedade e seu ego, mas também para seu jornal e para as vendas. E isto tem como efeito contribuir para a unificação da problemática em curso no campo jornalístico e, ao mesmo tempo, ao fechamento deste campo sobre ele mesmo, totalmente centrado nos pequenos problemas de um pequeno número de pessoas que, do debate televisivo ao coquetel de imprensa, não cessam de se encontrar e de trocar suas pequenas idéias.

Em seu livro ‘Sobre a televisão’, o senhor diz que a crítica da TV pelo discurso não é senão um último recurso, menos eficaz do que seria a crítica da imagem pela imagem. Pela reação da mídia, o senhor acha que se enganou?

Bourdieu – Sim e não. É verdade que o discurso que eu desenvolvi para a televisão teve bem menos efeito do que a transcrição publicada sob forma de livro. Mas trata-se de uma crítica pelo discurso (e que foi ao ar em horas de audiência muito baixa, à noite) e não de uma crítica pela imagem como eu poderia ter feito com a ajuda de profissionais de cinema – como Pierre Charles, autor de um filme intitulado Pas vu à la télé (Não passou na TV), que teve um enorme sucesso onde foi exibido -, ou simplesmente se eu tivesse podido mostrar na TV as imagens que eu comentava no meu discurso, ou construir todo um filme com exemplos de coisas vistas na televisão. Seria, pois, preciso servir-se dos recursos da televisão (e mesmo de todo o talento que certos publicitários desenvolvem a serviço da venda de produtos) para desmontar e criticar os abusos do poder cometidos a cada dia na televisão, não necessariamente de maneira intencional ou perversa, mas, mais freqüentemente, por ignorância ou por inadvertência. Você me dirá que, na televisão mesmo (não sei se vocês têm isso no Brasil), há programas que fazem isso. De fato, é uma falsa crítica, que não toca em nada de sério – a prova é o fato de que o filme de Pierre Charles, que questionava a integridade dos grandes responsáveis da televisão e sobretudo suas conivências com os políticos, foi proibido na TV. Este simulacro inofensivo de crítica é destinado, uma vez mais, a criar audiência dando satisfação a uma demanda confusamente sentida pelo público.

O senhor escreveu que a TV é um lugar de exibição narcísica. Os intelectuais mediáticos não são bem vistos por seus pares? Os eruditos e ensaístas devem fugir da telinha? O senhor participa de programas de televisão?

Bourdieu – É preciso esclarecer tudo isto. Infelizmente, o julgamento dos pares (falo dos eruditos sobre os eruditos, dos escritores sobre os escritores etc.) está cada vez mais ocultado e confundido pela interferência do julgamento dos ignorantes que são chamados a opinar, e estão em situação de expor julgamentos dotados de visibilidade e, daí, de uma certa autoridade sobre os profanos. Por exemplo, a gente verá vários jornalistas franceses apressarem-se em elogiar tal livro sobre jornalismo, que balança entre o banal e o medíocre e que tem como principal virtude, a seus olhos, dizer do jornalismo aquilo que os jornalistas eles próprios, ou ao menos os mais conformistas e os mais satisfeitos entre eles, diriam. Isto com a esperança de barrar (num sentido de censurar) todas as tentativas para falar cientificamente desse universo.

Seria preciso, por esse motivo, intervir na mídia?

Bourdieu – É uma questão muito difícil. Os editores, mesmo os mais rigorosos, avançam com toda sua força, e nós podemos compreendê-los. Recusar a televisão não é apenas comprometer o sucesso de obras que mececem atingir um público maior; é também deixar espaço aos intelectuais mediáticos, que contribuem para a mistura da qual eu falava há pouco propondo obras do kitsch cultural (e penso no Sartre de Bernard-Henri Lévy) e que não podem se defender contra os questionamentos de que são objeto (apesar da extraordinária solidariedade de todos os intelectuais beneficiários), atacando, muitas vezes da maneira mais sórdida, os que resistem a seu domínio sobre a imprensa e a edição.

Explique melhor esses personagens.

Bourdieu – Não sei se vocês têm como nós na França personagens que dominam, ao mesmo tempo, grandes órgãos de imprensa, como Grasset ou Gallimard, jornais (como o Magazine Littéraire, L'Express ou L'Événement du Jeudi) que são capazes de desencadear verdadeiras campanhas de publicidade em defesa de seus produtos ou dos de seus amigos; e, também, em casos mais excepcionais, campanhas de difamação contra os que se recusam a entrar no jogo ou que, mais simplesmente, têm a insolência de descrevê-lo. Volto à sua pergunta. É preciso fugir da telinha? Penso que seria preciso que artistas, escritores, eruditos e pensadores lutem individualmente e sobretudo coletivamente para conquistar a possibilidade de ter acesso à TV em boas condições, isto é, quando eles têm algo a dizer que merece atingir uma audiência maior e quando se lhes oferecem a oportunidade e o tempo necessário para dizê-lo. Creio que seria possível inventar novas formas de ação pela televisão que sejam capazes de envolver públicos mais vastos em torno de assuntos mais difíceis e mais importantes (como o futuro da economia mundial), mas sob a condição de mobilizar verdadeiramente todas as capacidades inventivas dos escritores, dos eruditos e, sobretudo, dos artistas, e especialmente dos cineastas. É este o tipo de tarefa na qual deveria se empenhar o intelectual coletivo tal qual o imagino.

Hoje, o que não aparece na TV corre o risco de não atingir a sociedade, tanto no bom quanto no mau sentido?

Bourdieu – Efetivamente, é por isso que todos os que desejam agir sobre o mundo, ao menos o suficiente para contrabalançar ou combater a ação dos que o dominam, devem se questionar seriamente sobre a questão do bom uso das mídias. Não é o caso de recusar as mídias, mas de se perguntar como utilizá-las sem se deixar usar por elas. É preciso os pesquisadores irem à televisão, mas dentro de suas conveniências e suas condições. Há imensos obstáculos, que não enumerarei para não desencorajar ou desesperar os que tentam lutar. Penso que já seria importante que os intelectuais tomem consciência de que, em sua relação com a televisão, e mais genericamente, o que está em jogo não é apenas seu ego, sua notoriedade atual ou potencial, mas algo infinitamente mais importante politicamente: a possibilidade de instituir um contrapoder crítico eficaz, capaz de se exprimir em nome do maior número de pessoas, as conquistas mais sofisticadas e mais avançadas da pesquisa científica e artística ou, mais simplesmente, a possibilidade de oferecer a todos os homens e a todas as mulheres de todos os países um acesso mínimo aos produtos mais raros e mais nobres da reflexão humana. A construção deste contrapoder só pode ser feita, evidentemente, com a cumplicidade ou mesmo a participação ativa da fração mais esclarecida e mais independente dos jornalistas."

ESTUDO SOBRE BOURDIEU: ESCOLA, REPRODUTORA OU TRANSFORMADORA?

Thaís Cardoso
Talita Francisco
Kelly Iria

Alunas do curso de pedagogia da Universidade Mackenzie



RESUMO

Este estudo é uma análise do pensamento do sociólogo francês Pierre Bourdieu referente à reprodução das práticas culturais. A temática questiona se em um ambiente escolar, o professor é um agente reprodutor da cultura apreendida fora da sala de aula. Após a investigação da biografia do sociólogo, uma análise da Teoria da Reprodução e uma comparação com pensamentos de outros sociólogos, a conclusão é de que a escola não é simples reprodutora da sociedade, mas apresenta um caráter transformador da mesma.

Palavras-chave

Educação, professor, reprodução, Bourdieu, práxis.





INTRODUÇÃO

Considerado um dos maiores sociólogos de língua francesa das últimas décadas, Pierre Bourdieu é um dos mais importantes pensadores do século 20. Sua produção intelectual, desde a década de 1960, é composta por uma extensa variedade de objetos e temas de estudo. Embora contemporâneo, é tão respeitado quanto um clássico. Crítico mordaz dos mecanismos de reprodução das desigualdades sociais, Bourdieu construiu um importante referencial no campo das ciências humanas.

No entanto, mesmo sendo reconhecida pela originalidade, a obra de Bourdieu é objeto de grande controvérsia. A maior parte de seus críticos, numa leitura parcial de seus trabalhos, classifica-o como um teórico da reprodução das desigualdades sociais. Não obstante, a reflexão de Bourdieu se destaca por uma singularidade: para ele, os condicionamentos materiais e simbólicos agem sobre nós (sociedade e indivíduos) numa complexa relação de interdependência. Ou seja, a posição social ou o poder que detemos na sociedade não dependem apenas do volume de dinheiro que acumulamos ou de uma situação de prestígio que desfrutamos por possuir escolaridade ou qualquer outra particularidade de destaque, mas está na articulação de sentidos que esses aspectos podem assumir em cada momento histórico.

Com base nas leituras realizadas, vimos que para o autor, a sociologia deve aproveitar sua vasta herança acadêmica, apoiar-se nas teorias sociais desenvolvidas pelos grandes pensadores das ciências humanas, fazer uso de técnicas estatísticas e etnográficas e utilizar procedimentos metodológicos sérios e vigilantes para se fortalecer como ciência. Bourdieu fez de sua vida acadêmica e intelectual uma arma política e de sua sociologia uma sociologia engajada, profundamente comprometida com a denúncia dos mecanismos de dominação em uma sociedade injusta. De acordo com sua perspectiva, a sociedade ocidental capitalista é uma sociedade hierarquizada, organizada segundo uma divisão de poderes extremamente desigual.

É possível afirmar que Bourdieu tem uma concepção relacional e sistêmica do social. A estrutura social é vista como um sistema hierarquizado de poder e privilégio, determinado tanto pelas relações materiais e/ou econômicas (salário, renda) como pelas relações simbólicas (status) e/ou culturais (escolarização) entre os indivíduos. Segundo esse ponto de vista, a diferente localização dos grupos nessa estrutura social deriva da desigual distribuição de recursos e poderes de cada um de nós. Por recursos ou poderes, Bourdieu entende mais especificamente o capital econômico (renda, salários, imóveis), o capital cultural (saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos), o capital social (relações sociais que podem ser revertidas em capital, relações que podem ser capitalizadas) e por fim, mas não por ordem de importância, o capital simbólico (o que vulgarmente chamamos prestígio e/ou honra). Assim, a posição de privilégio ou não-privilégio ocupada por um grupo ou indivíduo é definida de acordo com o volume e a composição de um ou mais capitais adquiridos e ou incorporados ao longo de suas trajetórias sociais. O conjunto desses capitais seria compreendido a partir de um sistema de disposições de cultura (nas suas dimensões material, simbólica e cultural, entre outras), denominado por ele habitus.

A sociologia, para Bourdieu, é uma ciência que incomoda, pois tende a interpretar os fenômenos sociais de maneira crítica. Para os interesses desta introdução, dentre muitas de suas contribuições no campo da Sociologia da Cultura; mais especificamente, a maneira pela qual Bourdieu interpreta a formação do gosto cultural de cada um de nós, pondo em xeque um dos consensos mais difundidos de nossa história cultural, o de que gosto não se discute.

Posto isso, a sociologia de Bourdieu é mais que uma sociologia da reprodução das diferenças, materiais ou econômicas; é uma sociologia interpretativa do jogo de poder das distinções econômicas e culturais de uma sociedade hierarquizada. Um aspecto de sua obra relativa é a interpretação da produção do gosto cultural. Bourdieu considera que o gosto e as práticas de cultura de cada um de nós são resultados de um feixe de condições específicas de socialização. É na história das experiências de vida dos grupos e dos indivíduos que podemos apreender a composição de gosto e compreender as vantagens e desvantagens materiais e simbólicas que assumem.

Mais especificamente Bourdieu afirma que as práticas culturais são determinadas, em grande parte, pelas trajetórias educativas e socializadoras dos agentes. Dito com outras palavras, Bourdieu afirma, causando um grande mal-estar na época, que o gosto cultural é produto e fruto de um processo educativo, ambientado na família e na escola e não fruto de uma sensibilidade inata dos agentes sociais.


DESIGUALDADES DE ORIGEM SOCIAL

Seria interessante fazer algumas ressalvas a esse pensamento. Pierre Bourdieu é ainda hoje respeitado como um dos fundadores do paradigma teórico acerca das práticas de cultura. Não obstante, uma série de trabalhos vem tentando atualizar suas contribuições, admitindo a existência de outros espaços transmissores e legitimadores de um gosto cultural. Entre eles podemos destacar o poder das mídias ou, no caso especifico dos jovens, seus grupos de pares. Nas sociedades modernas, portanto, uma gama complexa de referências de cultura partilharia com a escola e a família a formação do gosto de todos os segmentos sociais.

Este estudo pretende analisar o pensamento de Bourdieu no que diz respeito à reprodução das práticas culturais. Em um ambiente escolar, o professor é um agente reprodutor da cultura apreendida fora da sala de aula? Para chegar a uma conclusão far-se-á um estudo da biografia do sociólogo, uma análise da Teoria da Reprodução e uma comparação com pensamentos de outros sociólogos.


O SOCIÓLOGO

Pierre Bourdieu nasceu em 1930 no vilarejo de Deguin, sudoeste da França. Em 1951 entra na faculdade de Letras, em Paris, e na Escola Normal Superior, três anos depois se graduou em Filosofia. É enviado a Argélia, onde prestou serviço militar, esta sociedade cabila foi o palco de suas primeiras pesquisas. De volta à França, assumi a função de assistente do filósofo Raymond Aron, na Faculdade de Letras de Paris, filia-se também ao Centro Europeu de Sociologia, no qual se tornaria secretário-geral. Desenvolve, ao longo de sua vida, mais de 300 trabalhos abordando a questão da dominação e é, sem dúvida, um dos autores mais lidos, em todo o mundo, nos campos da Antropologia e Sociologia, cuja contribuição alcança as mais variadas áreas do conhecimento humano, discutindo em sua obra temas como educação, cultura, literatura, arte, mídia, lingüística e política. Sua discussão sociológica centralizou-se, ao longo de sua obra, na tarefa de desvendar os mecanismos da reprodução social que legitimam as diversas formas de dominação, em 1970 escreve o livro “A Reprodução”, em parceria com Jean-Claude Passeron. O Sociológo Durkheim serve como referência e base para construção de sua sociologia, qual tem ênfase a educação, tornando-se um sociológo de grande influência ao longo do século XX. Ele analisa o funcionamento da escola francesa e, à partir desta análise percebe que ela reproduz as desigualdades sociais contribuindo pela manutenção das diferenças socias dentro de um discurso de igualdade.


A REPRODUÇÃO

O sociólogo Bourdieu detecta mecanismos de conservação e reprodução em todas as áreas da atividade humana, entre elas e foco de nosso estudo, o sistema educacional, onde o professor atuando dentro da sala de aula irá reproduzir o sistema de dominação presente fora da sala de aula. Para ele a educação contribui em esclarecer as formas pelas quais os indivíduos conhecem as instituições e se reconhecem nela e como operam esse reconhecimento no que se refere às produções simbólicas (arte, religião, ciência e outras), com esta perspectiva, a sociologia da educação configura seu objeto particular quando se constitui como ciência entre a reprodução social e a reprodução cultural.

Diante de suas análises, a educação perde a função de transformadora e democratizadora das sociedades e passa a ser vista como uma das principais instituições que colaboram para a manutenção e a legitimidade da desigualdade social, bem como os privilégios sociais, caracterizando uma completa inversão de função. A priori este conceito podemos afirmar que os alunos não possuem características individuais que buscam o conhecimento de maneira igualitária, e sim que são atores socias dotados de uma bagagem social que lhes favorecerá ou não dentro da escola, isto porque não importa os dons presentes no aluno, nem mesmo sua função psicológica mas sim a sua origem social.

Sendo assim a escola, para Bourdieu, é simplesmente um espaço de reprodução de estruturas socias e de transferência de capitais de uma geração a outra. Nela se faz presente a diferença social e o reconhecimento social, onde os alunos mais pobres aceitam a trajetória dos bem-sucedidos como resultado de um esforço recompensado. Dentro desta realidade é papel funcional do professor reconhecer o grupo social deste aluno, entre a quantidade e a qualidade do conhecimento que ele traz em sua bagagem, sua “herança social”.

A teoria da Reprodução está além da educação, esta teoria está fundamentada na força que a dominação exerce sobre os dominados e a educação é apenas um dos meios pelo qual a dominação alcança seus objetivos. Dentro do contexto escolar a dominação se faz pelo procedimento pedagógico e para tal Bourdieu classifica a ação pedagógica como uma forma de violência simbólica, não se referindo a violência física mas uma violência de imposição cultural marcada pelas forças que regem o poder. A ação pedagógica para este sociológo é uma violência pois, com objetividade impõe uma cultura dos grupos e classes dominantes, ou seja, podemos dizer que seria uma inculcação de valores e normas de um dado grupo social responsável pelo domínio da sociedade, sendo assim segundo a teoria de Bourdieu o professor em sala de aula é representante de um objetivo presente além da sala de aula, onde o sistema os torna aptos para utilizarem os privilégios da reprodução cultural, dissimuladamente apresentadas como cultura universal.

A priori todo este conceito, podemos classificar a educação como reprodutora de cultura e reprodutora de estruta de classes, e dentro deste contexto classificar o trabalho pedagógico como garantia desta reprodução, da imposição dos conteúdos culturais dos grupos e das classes dominantes sobre os dominados, garantindo a boa ordem e legitimando as diferenças sociais. A teoria da reprodução surge após a análise do cotidiano escolar, onde Bourdieu observa que os objetivos dados teoricamente de educação transformadora e igualitária não estão presentes na realidade da ação pedagógica, por esta análise não podemos dizer que Bourdieu era a favor de tal educação, e sim um sociológo que estuda criteriosamente a educação de sua época.

Vítimas desta educação reprodutora são os indivíduos classificados por Bourdieu de atores sociais, estes são caracterizados pela bagagem adquirida socialmente, nenhum destes atores, segundo o sociológo, apresentam autonomia, esta bagagem que é transmitida pela família inclui o capital cultural, ou seja, a cultural geral que é incorporada, como culinária, arte, religião, vestuário, esportes, etc., estas influenciarão diretamente no desenvolvimento escolar. Ademais deste capital cultural os indivíduos irão perpetuar a estrutural social pela qual pertencem agindo de acordo com o conjunto de disposições típicas da estrura na qual foram socializados. As ações sociais dentro da reprodução não ocorrem mecanicamente, ou seja, as ações individuais não são rígidas, elas são estruturas e concepções adquiridas pelo indivíduo através do convívio social e famíliar que nortearão suas ações e atitudes, sendo princípios de orientação que precisariam ser adaptados pelo sujeito às variadas circunstâncias de ação, caracterizando uma ação dinâmica direcionada. Tendo como primordial a educação familiar e o capital cultural adquirido pelo indivíduo, a educação e o sucesso dentro deste processo se darão pelo bom contexto já adquirido, ou seja, o sucesso escolar se baseará no capital cultural e este favorecerá o desempenho durante todo o currículo escolar, facilitando a aprendizagem dos conteúdos. O desempenho do aluno dependerá do quão culto e legítimo se faz seu conhecimento, até mesmo o domínio da língua, conhecimento este trazido de casa, sendo assim a educação escolar se dá por continuidade da educação oriunda da família culturalmente favorecida, o mesmo acontece com as famílias pobres, de baixa cultura, só que devido à baixa aquisição cultural familiar, estas crianças apresentam grande dificuldade quando expostas ao contexto escolar, não conseguindo concluir com êxito sua educação. Como facilitador da aprendizagem temos o bom julgamento cultural e a moral destes alunos.

Para compreensão desta teoria é de fundamental importância também destacarmos o conceito de Habitus, que seria o conjunto de ações e costumes que determinam os diferentes grupos sociais, e isto devido ao capital econômico destes grupos, a aquisição de cultura por determinados locais e estabelecimentos de ensino caros, bem como as viagens de estudos. O habitus classifica o indivíduo segundo sua disposição para ação, que são adquiridos culturalmente através dos habitus de seu grupo social. Historicamente os fracassos e sucessos irão inconscientemente definir os habitus presentes ao indivíduo, onde irão investir tempo e dinheiro em suas ações conforme a necessidade para suprir estes fracassos e valorizar os sucessos.

Bourdieu também caracteriza o êxito escolar ao título adquirido, ou seja, socialmente o indivíduo será visto e valorizado segundo seu título escolar, entretanto para Bourdieu este título também será decorrente dos habitus e conceitos presentes na bagagem destes indivíduos.


CRÍTICA A TEORIA REPRODUTIVISTA

A sociologia de Bourdieu foi e ainda é alvo de grandes críticas, o seu livro A Reprodução, tem sua primeira edição brasileira em 1975, dentro de uma década que foi marcada pela extensão da leitura dos textos de Bourdieu. Este livro A Reprodução ocupou peculiar posição nas críticas ao sociólogo, pois o livro foi por certo tempo, objeto central das polêmicas políticas travados no campo da reprodução versus transformação. O livro traz toda a teoria de reprodução e como Bourdieu acreditava que o homem é um ator social, fruto de um capital cultural determinado pelos dominadores, que utilizarão a educação como ação pedagógica facilitadora desta reprodução social, por esta teoria, aqui no Brasil ele fica sendo conhecido como o sociólogo “reprodutivista”. Dentro deste contexto onde os textos de Bourdieu começam a ser buscados e sua teoria passa a se concretizar no Brasil, muitos artigos são publicados contestando sua obra, principalmente a reprodução, artigos como o do crítico Vincent Petit em 1982 “As contradições de ‘A Reprodução’, diante deste quadro podemos afirmar que sua obra potencializou os estudos no campo educacional brasileiro, facilitando a compreensão da realidade educacional que, já na época, era excludente”.

Saviani em 1983 publica uma coletânea de artigos reflexivos a teoria da reprodução, onde esta passa a ser objeto de controvérsia política no campo educacional brasileiro, sempre dentro do contexto de reprodução versus transformação. O sociólogo Bourdieu passa a ser visto como um sociólogo crítico, pois sua teoria possibilita instrumentos para a crítica da função da educação na sociedade capitalista, mas deixa uma lacuna, pois, não fornece meios para a ação modificadora, limita-se a constatação de reprodutivista.

Além de ser classificado como sociólogo crítico, Bourdieu também passa a ser classificado como pessimista, segundo Goergen, devido seu desânimo que via na educação nada mais que um engenho reprodutor dos interesses das classes dominantes, para alguns autores a teoria de Bourdieu é uma afronta ao ato pedagógico, que segundo ele, seriam exercidos e manipulados pela classe dominante, cujo poder absoluto exerceria uma reprodução das desigualdades e da opressão social, a maioria destes autores críticos a Bourdier são de base marxista e acreditam assim como Antônio Gramsci e Karl Mannheim, que a educação tem capacidade transformadora na sociedade, uma visão mais otimista.

Um dos grandes críticos a sociologia de Bourdieu é o professor Cláudio Martins Nogueira, que acredita que as críticas acontecem, pois a teoria da reprodução vem exagerar a visão pessimista sobre a escola, entretanto apesar de muitas críticas, na essência as conclusões de Bourdieu não foram contestadas. O professor Nogueira coloca que são duas as razões para a crítica a teoria de Bourdieu, a primeira seria que a categoria classe social não seria suficiente como critério de diferenciação dos grupos familiares segundo suas práticas escolares, pois seriam por demais abrangentes para classificar as famílias onde, dentro de uma mesma classe social temos famílias educadas distintamente e um fator que colabora para tal distinção seria a religião, para tal razão afirma-se que os habitus não são caracterizados pelas classes sociais.

A segunda crítica se baseia na transmissão e na formação dos Habitus, que não seriam transmitidos automaticamente aos filhos por osmose, para compreender a formação dos habitus seria necessário estudar cada família particularmente, como se dá a relação afetiva entre os membros e como estes habitus são transmitidos ou não, dada a diferença na dinâmica da transmissão destes habitus e na aquisição do capital cultural, seria praticamente impossível classificar habitus por herança social, igualitária ao grupo social pertencente, As famílias e os indivíduos não se reduzem à sua posição de grupo social.

Dento dos autores que estudaram Bourdieu destaca-se Bento Prado Jr, que foi um dos melhores interpretes do sociólogo francês no Brasil, Prado Jr defende que Bourdieu e Passeron estabelecem uma teoria de violência simbólica no funcionamento das instituições escolares da França, e que as grandes críticas a esta teoria são de base marxista que não encontram explicações, na teoria de Bourdieu, para o conflito de classes dentro das instituições pedagógicas.


CONCLUSÃO

O sociólogo Bourdieu demonstra em seus estudos uma visão pessimista da ação da educação sobre indivíduos, por ele chamados de atores sociais, pois, considera que em um ambiente escolar há apenas uma reprodução do que ocorre em outros ambientes não-escolares. Neste sentido, analisando o professor “em” e “além” da sala de aula preferimos manter uma perspectiva otimista do processo pedagógico, pois, a escola deve ter uma função transformadora e democratizadora, como afirmam Saviani, Goergen e Cláudio Martins Nogueira, contrariando Bourdieu e seu pensamento de que a escola é um ambiente que legitima a desigualdade social. Acreditamos que os alunos possuem singularidades e especifidades e que sua origem social é importante, mas não determinante. Enxergamos a escola não como uma instituição onde há imposição cultural, mas onde se faz, alunos e professores, juntos, sua própria cultura, que modifica e é modificada permanentemente. O professor deve trabalhar “em” e “além” da sala de aula convicto de que sua ação é modificadora, objetivando sempre uma sociedade com menos desigualdades e mais otimismo.

Pierre Bourdieu, o investigador da desigualdade


O sociólogo francês detectou mecanismos de conservação e reprodução em todas as áreas da atividade humana, entre elas, o sistema educacional

Embora a maioria dos grandes pensadores da educação tenha desenvolvido suas teorias com base numa visão crítica da escola, somente na segunda metade do século 20 surgiram questionamentos bem fundamentados sobre a neutralidade da instituição. Até ali a instrução era vista como um meio de elevação cultural mais ou menos à parte das tensões sociais. O francês Pierre Bourdieu (1930-2002) empreendeu uma investigação sociológica do conhecimento que detectou um jogo de dominação e reprodução de valores.

Suas pesquisas exerceram forte influência nos ambientes pedagógicos nas décadas de 1970 e 1980. "Desde então, as teorias de reprodução foram criticadas por exagerar a visão pessimista sobre a escola", diz Cláudio Martins Nogueira, professor da Universidade Federal de Minas Gerais. "Vários autores passaram a mostrar que nem sempre as desigualdades sociais se reproduzem completamente na sala de aula." Na essência, contudo, as conclusões de Bourdieu não foram contestadas.

Na mesma época em que as restrições a sua obra acadêmica se tornaram mais frequentes, a figura pública do sociólogo ganhou notoriedade pelas críticas à mídia, aos governos de esquerda da Europa e à globalização. Ele costuma ser incluído na tradição francesa do intelectual público e combativo, a exemplo do escritor Émile Zola (1840-1902) e do filósofo Jean Paul Sartre (1905-1980).

The Wall - Uma obra de arte conceitual


O filme foi um sucesso de bilheteria, assim como o disco que é considerado como o álbum duplo mais vendido da história! Você já parou para pensar por que gosta de Pink Floyd?

Muitos de nós, floydianos, somos fãs do Pink Floyd por causa da voz suave de Roger Waters, dos ótimos solos de guitarra de David Gilmour, do estilo "dó-ré-mi" de Nick Mason ou dos lindos acordes de Richard Wright. Admiramos os shows, as letras simbólicas e progressivas, a incrível capacidade de demonstrar sentimentos pela música, e muitas outras qualidades mais.
Porém, existe uma característica no Pink Floyd que poucas bandas possuem, e que atrai milhões de fãs em todo o mundo: a possibilidade de se envolver com as letras.

E, com certeza, o álbum THE WALL (e o filme) é o que mais tem essa capacidade de entrar em nossos corações. Podem chamar isso de alienação, mas, confesso que se eu não pudesse desabafar às vezes ouvindo aquele solo de guitarra em Comfortably Numb no último volume, já teria encontrado alguma outra forma menos sadia de acabar, ou pelo menos de me aliviar das preocupações (drogas, por exemplo).

Alguns podem achar exagero, outros sabem muito bem do que falo, porque também o fazem. E eu digo para vocês: se você não entrar na história, não se envolver, o álbum THE WALL será sempre um simples CD (ou vinil) duplo da capa branca, com "azulejos" e monstrinhos desenhados e que tem aquela música do "Hey teacher!". Porém, se você assistir o filme, deixar as músicas entrarem em seu coração, e passar a enxergar o muro que envolve a cada um de nós, verá que THE WALL retrata as nossas próprias vidas, nosso sofrimento de pessoas inteligentes que se importam e sofrem com o mundo que está aí.

Afinal de contas, aquele filme não é simplesmente uma história baseada na vida de Roger Waters, pois, se você prestar bastante atenção, descobrirá que essa "autobiografia incrementada" é apenas um pretexto para Waters e, por que não, Gilmour e Ezrin, apontarem tudo o que há de absurdo neste mundo louco em que vivemos.

SOBRE A INTERPRETAÇÃO

Este texto não tem a pretensão de descrever tudo o que Roger Waters quis expressar com o álbum e com o filme, pois talvez nem ele próprio tenha idéia da dimensão que sua obra tomou e das inúmeras interpretações que podem surgir sobre a obra THE WALL em si. É apenas uma tentativa de um fã de expor suas idéias, e fazer com que as pessoas que gostam do Floyd, mas ainda não compreenderam THE WALL, tenham uma idéia próxima do que ele significa.

Eu não posso dizer que tudo o que está aqui seja verdade, como ninguém poderá dizer que estou mentindo; pois esta é apenas uma interpretação pessoal de uma obra muito complexa e abstrata, apesar de realista.

"THE WALL foi um álbum incompreendido" Richard Wright

A HISTÓRIA

Na verdade tudo começou com "Animals", que era uma espécie de pré-THE WAll, onde Waters, inspiradíssimo no livro de George Orwell "A Revolução dos Bichos" (para mim o melhor livro que ja li) critíca o caráter do ser Humano comparando-o a animais, onde tudo acaba como começa: antes os fazendeiros dominavam seus animais, até estes decretarem uma revolução contra seus donos, expulsando-os. Eles abominavam qualquer tipo de atitude semelhante a um humano, lembrem-se "quatro patas bom, dois pés ruins". Depois de muito tempo, a ganância e o poder sobem às cabeças de seus líderes(os Porcos) que no final acabam agindo igualmente aos seus ex-donos Humanos e começam a se vestir com roupas e andar como Bípedes e no final se torna "quatro patas bom, duas melhor ainda". Então Waters radicalmente desenvolveu sua crítica criando The Wall.

Uma parte da idéia surgiu num desastroso show da turnê In The Flesh de 1977 onde Waters cuspiu na cara de um freqüentador da platéia que invadira o palco. Isso se tornaria um dos temas do álbum. O desastre do show de 77 acabou virando inspiração para a monumental turnê de The Wall que aconteceria nos anos de 80/81. O primeiro show foi marcado por um incêndio logo no inicio quando uma das cortinas acabou pegando fogo devido aos fogos de artifício que eram lançados.

No ano de 82 o tema de The Wall ganha um filme com direção de Alan Parker e o ator Bob Geldof no papel principal. Embora o filme tenha ganhado um bom reconhecimento da mídia, Waters não ficou satisfeito com o resultado final.

THE WALL significa "o muro" em português. Este muro é algo abstrato, um sentimento de angústia que prende nossos corações e nos isola do mundo, nos dando a impressão de que não existe saída para nossos problemas.

Marcado pelas letras amargas compostas por Waters, o disco tem uma qualidade sonora marcante, com destaque para a atuação de Gilmour na guitarra. Está repleto de ruídos, gritos, vozes, mensagens ocultas, diálogos, faz a alegria daqueles que procuram os mínimos detalhes.

O grupo começou a se dissolver com as diferenças que surgiram entre Waters e Wright, causadas pelo início da paranóia de Waters e pelo consumo de cocaina de Wright. Wright acabou deixando o grupo, tocando como músico contratado durante os shows.

"As gravações foram muito tensas, principalmente porque Roger estava começando a ficar um pouco doido. Já estava tudo gravado quando ele brigou com Rick. Rick tem um estilo próprio, muito específico para o piano e ele não estava conseguindo compor nem adaptar com facilidade. Isto é um grande problema quando as outras pessoas estão discutindo quem fez o que e quem leva os créditos. Roger e Dave estavam trabalhando como uma dupla, colocando-me de lado. Houve momentos em The Wall em que os dois fizeram tudo. Rick estava incapacitado e eu não podia fazer nada para ajuda-los." Nick Mason (baterista)

"Nós tinhamos um estúdio no sul da França, onde Wright ficava hospedado. Os outros alugaram casas a cerca de 20 milhas de distância. Íamos para nossas casas de noite e dizíamos a Rick 'Faça o que quiser, aqui estão as trilhas, escreva algo, inclua um solo, faça algo. Você tem todo o tempo do mundo para fazer isto.'. Durante todo o tempo em que estivemos lá, e foram vários meses, ele não fez nada. Ele não era capaz de tocar nada!" David Gilmour(guitarrista)

"Roger nos apresentou o álbum em um demo, e todos sentimos que era potencialmente muito bom, mas musicalmente fraco, muito fraco. Bob Ezrin, Dave e eu trabalhamos nele para torná-lo mais interessante. Mas Roger e seu grande ego daqueles dias ficavam dizendo que eu não estava me dedicando o bastante, apesar de não me deixar fazer nada. A crise veio quando nós todos saímos de férias depois do fim das gravações. Uma semana antes das férias terminarem recebi uma ligação de Roger, que estava na América, convocando uma reunião do grupo imediatamente, onde disse que queria que eu abandonasse a banda. A princípio recusei. Então Roger disse que se eu não saisse após o lançamento do álbum ele abandonaria o grupo naquele instante e levaria as gravações com ele. Não haveria álbum nem dinheiro para pagar nossas enormes contas. Tive que aceitar, tinha duas crianças para criar. Foi terrível. Agora eu sei que errei, era um blefe de Roger. Mas eu realmente não quero mais trabalhar com esse cara nunca mais." Richard Wright (agora ex-tecladista)

Ironicamente ele foi o único a ganhar dinheiro, já que o custo dos shows era tão elevado que o grupo simplesmente levou prejuizo. Wright, como contratado, recebeu seu salário e saiu limpinho.

Foi um verdadeiro sucesso comercial, permaneceu no topo das paradas americanas por 15 semanas e levou o disco de platina em março de 1982 por ter vendido um milhão de cópias.

Realmente, Waters fez de tudo para demonstrar que todos os acontecimentos ruins da vida do personagem da história (ele adotou o nome Pink Floyd para ele, lembram?) não foram provocados, mas eram inevitáveis. Coisas que acontecem e existem, e que não se podem mudar.

Embora no álbum a idéia que se passa não seja essa, no filme, toda a história se desenvolve em um devaneio do "Sr. Floyd", sentado em seu quarto e olhando fixamente para a porta. Sonho esse formado por lembranças de sua vida (péssimas, por sinal).

Em "In the Flesh?", nosso herói (interpretado no filme por Bob Geldof) nos convida a descobrir o que há por trás daquele olhar frio e do seu disfarce "nazista". E, nessa mesma música, Floyd relembra a primeira desgraça inevitável de sua vida: a morte de seu pai na 2ª guerra mundial (o pai de Waters realmente morreu nesta guerra) ainda na sua infância, pelo avião que aparece no filme e na música.

Guerra é o primeiro absurdo do mundo retratado na obra, e influenciará a personalidade do menino Pink para o resto de sua vida. "When the Tigers Broke Free", "The Thin Ice" e "Goodbye Blue Sky" são as músicas que introduzem, junto com "In the Flesh?", o tema guerra na história.

Aliás, em "Goodbye Blue Sky", pode-se notar uma severa crítica ao Governo, mais especificamente o da Inglaterra. No filme, a bandeira inglesa se transforma em uma cruz fincada no chão e sangrando, significando que por trás do ideal de defender a bandeira se esconde a morte. "Foi assim que o Alto Comando tirou meu pai de mim", diz a letra de "When the Tigers Broke Free".

Outra influência que a morte de seu pai trouxe foi a própria ausência deste no desenvolvimento de Pink. Isso é mostrado na cena em que ele está no parque, sozinho, e encontra um senhor que lhe parecia simpático. Pede a ele para que o ponha em cima do brinquedo. Porém, quando Pink pensou que havia encontrado um pai, o homem rejeita sua mão e empurra-o para longe. Triste, o menino senta no balanço, sozinho, e observa as outras crianças felizes, brincando com seus pais.

E o muro ganha sua pedra fundamental, seu primeiro tijolo. Afinal de contas, a morte do pai na guerra foi para Floyd apenas um tijolo no muro, como diz a música "Another Brick in the Wall part I".

"The Happiest Days of Our Lives" e a clássica "Another Brick in the Wall part II" (quem não conhece "aquela do Hey Teacher!"?), põem em discussão outro alicerce de nossa sociedade: a educação. Roger Waters define a educação como uma alienação (representada no filme pelas máscaras com botões no rosto das crianças), fazendo com que as pessoas, ainda crianças, percam sua identidade própria e pensem o que o Governo quer que elas pensem. O sarcasmo e a violência com que os professores tratam os alunos (segundo Waters) na sala de aula são atribuídos aos problemas que eles (professores) enfrentam em casa com suas "esposas psicopatas e gordas". No filme, o pequeno Pink sonha em ver todos os alunos destruindo a sala, queimando a escola e jogando o professor no fogo, enquanto Gilmour toca seu solo de guitarra. Destruir a escola é uma atitude própria de quem não foi alienado pela educação, e por isso é contra ela.

Cabe aqui uma observação: muitos de nós, fãs do Pink Floyd, não damos o devido valor à música "Another Brick in the Wall part II", um verdadeiro clássico do rock mundial. Porém, nunca devemos esquecer que é esta a música mais famosa de nossa banda. Além do mais, que outro grupo de rock teve a coragem de colocar as próprias crianças cantando contra a educação? É exatamente esta ousadia que faz desta música uma das maiores e mais conhecidas do mundo. "Another Brick in the Wall part II" acabou se tornando um símbolo da revolta. Não da revolta pura e simples, sem motivo; mas da revolta consciente, de pessoas que não se acomodam com o que vêem de errado e precisam se manifestar.

Terminada a observação, voltemos à história.

Outro grande fator que viria a influenciar a personalidade do menino Pink é a superproteção por parte de sua mãe ("Mamãe vai te ajudar a construir o muro"), retratada primeiramente na música "Mother". A infinidade de perguntas que Pink faz a sua mãe na letra da música indicam a sua dependência com relação a ela. Waters procurou (como não podia deixar de ser) estender as características da mãe no filme a todas as mães, usando frases como "Mamãe vai sempre descobrir onde você esteve", "Mamãe vai checar todas as suas namoradas", "Você será sempre um bebê para mim", entre outras que realmente expressam como são a grande maioria das mães.

"Mãe, será que devo construir o muro?". Aqui já podemos perceber o desejo do menino de se isolar do mundo.

Ainda em "Mother", podemos apontar outro tema muito explorado em "THE WALL": o relacionamento entre homem e mulher. No filme, aparece o contraste entre o menino curioso, que observa a vizinha trocando de roupa com o binóculo, e o homem revoltado, que prefere o jogo de futebol (observe que nem no jogo ele presta muita atenção) do que fazer amor com sua mulher. Quais seriam as razões que levaram o personagem a perder esse desejo de adolescente? Com certeza, a morte do pai, a superproteção da mãe e a revolta contra a educação podem ser apontados como motivos suficientes (segundo o autor) para isso.

Com certa razão, devido ao desinteresse do marido, a Sra. Floyd acaba traindo Pink com um líder anarquista. No filme, Pink Floyd liga para sua esposa, mas o amante desliga o fone em sua cara duas vezes. A telefonista diz: "era um homem atendendo". Depois, naquela animação que aparece no início da música "Empty Spaces" (uma das melhores introduções elaboradas pelo Pink Floyd), as flores brigando representam o relacionamento conjugal. No início, elas se esfregam e se acariciam. Num certo ponto, é evidente a representação nos desenhos de uma relação sexual (repare como as flores adquirem formas próximas dos órgãos sexuais). Até que, no fim, uma flor (a que representa a mulher) acaba engolindo a outra. Certamente, Waters quis com este desenho estender a característica de traidora a todas as mulheres, assim como ele fez com as mães e os professores.

Após a festinha que ocorre durante a execução da música "Young Lust", uma das mocinhas entra no trailer de Floyd. Era a chance dele "descontar" a traição, mas isso não aconteceu. Ao invés disso, numa das cenas mais chocantes do filme, o marido traído põe para fora toda a raiva, quebrando todo o seu trailer em cima da intrusa. Era uma de sua crises ("One Of My Turns").

Na verdade, o roteiro do filme não é muito fiel às letras do álbum, pois se as observarmos, podemos verificar a seguinte sequência:

Empty Spaces fala sobre a fase pré-adolescente, onde nossos desejos sexuais começam a aflorar. O espaço vazio a que se refere o título é a necessidade de se relacionar com o sexo oposto. Estes desejos se aprofundam ainda mais em Young Lust: "preciso de uma mulher safada...". Enquanto a letra da música sugere um "grande interesse" de Floyd por mulheres, no filme ele é o único que não participa da "festinha". Seria só nesta música então que ele conheceria sua mulher, e não em "Mother".

Todo casamento acaba esfriando. É sobre isso que fala a letra de "One of my Turns", o momento onde a rotina toma conta do relacionamento e marido e mulher perdem aquele amor dos primeiros anos. "Com o tempo eu envelheci, você se tornou fria e nada mais tem graça". Seguindo esta linha de raciocínio, pode-se muito bem pensar que a mulher que aparece falando com Floyd no início de "One of my Turns" é a sua esposa, e não uma fã ("Este lugar é maior do que nosso apartamento!").

Bem, seja lá como for, "Don’t Leave me Now" é a hora da traição e, em "Another Brick in the Wall part III", Floyd declara a traição de sua mulher como mais um tijolo no muro, assim como todas as pessoas que o fizeram sofrer: "Vocês não passaram de tijolos no muro".

Agora o muro está completo.

A partir de "Goodbye Cruel World", ocorre uma mudança muito importante no filme: Floyd, dá adeus ao mundo real, e passa a "viver" no mundo que há dentro de seu muro, que, no filme, deixa de ser uma abstração e toma forma "real". O filme entra então numa fase de extremo simbolismo, com cenas mais loucas e de compreensão mais difícil. A história se desenrola em duas linhas: a da vida real e a das viagens dentro do muro.

Durante "Is There Anybody Out There", "Nobody Home" e "Vera", Floyd fica vagando pelo mundo de dentro do muro. Essa "viagem" representa um período de reflexão, sobre todos os motivos que deram origem a cada tijolo. O menino Pink acaba encontrando seu pai morto na trincheira; e a si próprio, na idade adulta, no canto de um sanatório abandonado. Vai à estação ferroviária esperar o trem que trouxe os sobreviventes da guerra, e não encontra o seu pai. "Alguém aqui se sente como eu?".

Enquanto isso, na vida real, ele acaba com todos os pêlos de seu corpo, inclusive as sobrancelhas ! Um momento de extrema loucura.

"Comfortably Numb" é o cúmulo da tristeza. Sem dúvida, esta música deve ocupar, juntamente com "Another Brick in the Wall part II", um lugar entre as melhores músicas do Pink Floyd e do Rock mundial. No filme, há uma mistura entre cenas do mundo real e o do muro. Floyd está confortavelmente entorpecido em seu quarto, e é encontrado pelos empresários e companheiros de banda. Os médicos tentam reanimá-lo com uma injeção ("Ok, é apenas uma picadinha de agulha!"), ao mesmo tempo em que as péssimas lembranças de sua vida perturbam a mente do personagem.

Do ponto de vista do mundo real, a injeção causou efeitos colaterais e não funcionou como devia. Sua visão ficou turva, teve de ser carregado até o carro que o levaria para o show, e sentia que sua pele estava derretendo. Do ponto de vista do mundo do muro, este é um momento em que todas as péssimas lembranças se juntam e pressionam a cabeça de Floyd, causando uma revolta tão grande que fez sua pele realmente "derreter" e se descolar do corpo. Tudo isso acontece enquanto David Gilmour executa um dos melhores solos de toda a sua carreira (se não o melhor), expressando toda essa revolta de uma maneira enérgica, mas ao mesmo tempo "bonita".

Nos shows, aquela esfera espelhada que aparece sempre que "Comfortably Numb" é tocada representa o desejo de manifestar a revolta a todo o mundo, através dos raios de luz, e também do solo de guitarra.

Outro momento importantíssimo da história: Floyd consegue se livrar da sua pele e, por baixo dela, aparece um uniforme estilo nazista. Percebe-se aí a grande influência da morte de seu pai na 2ª Guerra Mundial (lembrem-se que foi esta a guerra contra o nazismo). A suástica dá lugar a dois martelos cruzados, representando o desejo de se derrubar o muro, ou seja, se libertar das angústias e viver normalmente.

Aqui você deve estar pensando: mas não foi o próprio Floyd que construiu o muro para se isolar do mundo? Por que agora ele quer derrubá-lo?

Para entender esta aparente contradição, você deve se colocar no lugar da personagem. Você com certeza não iria querer se isolar do mundo. Floyd também não. Porém, se aqueles fatos (morte do pai, mãe superprotetora, professor carrasco, traição da mulher) acontecessem em sua vida, certamente no seu inconsciente haveria um desejo de se isolar. O muro é construído no inconsciente, e nós só nos damos conta de seu tamanho quando ele está muito alto. Traduzindo para a linguagem do mundo real, nós nos isolamos quase sem querer, e só percebemos nosso isolamento quando já estamos quase sem saída para nossos problemas. Neste ponto, você também não ía querer quebrar o muro?

Floyd vai para o show. Mas, em sua cabeça, atordoada pela injeção e pelo muro, o show toma uma aparência nazista, com braços esticados e tudo o mais. "In the Flesh" e "Run Like Hell" são as músicas deste trecho, talvez o único momento alegre do filme, já que é a parte que ilustra a vontade de sair do isolamento e manifestar os sentimentos. Novamente podemos ver as máscaras de botão no rosto das pessoas ("É melhor você colocar aquele seu disfarce favorito, com os olhos cegos de botão..."), representando alienação. Existem duas hipóteses para explicar o significado das máscaras no show.

Pode ser uma nova referência aos governos (com Floyd fazendo o papel de "líder político", alguém como Hitler). Neste caso, o significado da cena seria que todo tipo de governo pode ser comparado ao nazismo, pois todo governo acaba alienando as pessoas através da educação e da propaganda. Podemos muito bem tomar o exemplo do Brasil. Como pode um presidente entregar o seu país ao capital estrangeiro de uma forma tão grotesca e o povo não fazer nada? Acabar com a educação e com a saúde e ninguém perceber? Isso pode ser explicado pelo simples fato de que o nosso povo é alienado, assiste TV demais e acredita em tudo o que o governo diz através dela. Não se importa com a política de seu país e ainda acha que só "Fernandinhos" têm a capacidade de governar. Alienação pura !!!

Waters está criticando seus próprios fãs. Segundo ele, nós ouvimos suas músicas sem ao menos saber o que elas significam. É uma grande injustiça, já que a maioria de nós, floydianos, somos fãs do Pink Floyd justamente por causa das idéias e das letras. Mas todos nós sabemos que o relacionamento de Waters com seus fãs não era grande coisa. Além do mais, talvez ele não esteja criticando os verdadeiros fãs, mas as pessoas em geral que ouvem suas músicas.

"Waiting for the Worms", além de fazer referência à enganosa propaganda nazista, é o momento da guerra entre os martelos e os tijolos. Representa nossa luta contra o isolamento e suas causas. Mas lutar contra este isolamento não é nada fácil. O muro é mais forte, e em "Stop", Floyd se cansa de lutar. Em seu devaneio, ele é preso por ser "nazista". Na linha real, o guarda encontra "Floyd" cansado do show e sentado no canto de um sanitário, bebericando um pouco da água da privada.

Chegamos à fase final da história: a hora do julgamento ("The Trial"). No filme, é uma parte feita com desenho animado, onde cada pessoa que participa da sessão é representada por um desenho louco. Floyd vira um simples boneco de pano, sem movimentos, sem vida, ilustrando a sua impossibilidade de se defender das acusações. É um julgamento tipo "Juízo Final". Podemos ver o professor (em uma cena, aparece um boneco de uma mulher gorda e feia, a mulher do professor, que bate no boneco que representa o professor, que por sua vez, bate no boneco sem vida que faz as vezes de Floyd), a mãe (o abraço dela de transforma em um muro), a esposa, entre outros.

Floyd é culpado por construir seu próprio muro. Aquele Juiz que aparece dando o veredicto final representa a sociedade, o mundo, as outras pessoas. Tanto é que, no final da música, um grande coro grita: "Derrubem o muro". É a representação da sociedade. Ela não se importa se os motivos que levaram Floyd ao isolamento são válidos, se Floyd teve culpa ou não das desgraças de sua vida. O que importa é que Floyd é um isolado e não pode mais sê-lo. Portanto, o muro deve ser quebrado. E assim se faz.

"Outside the Wall" tem um significado muito bonito: trata das pessoas que estão do outro lado do muro, que amam a pessoa que está isolada, mas não são "vistas" por esta, e algumas delas acabam desistindo. "Afinal não é fácil bater seu coração contra o muro de um louco errante."

As crianças no final do filme representam o que cada um de nós vai fazer após assistir o filme: recolher tijolos do muro de Floyd e começar o seu próprio muro, ou jogar a sujeira fora e tentar viver uma vida normal. Você escolhe !

CONSIDERAÇÕES FINAIS

THE WALL é uma obra de protesto contra o mundo, as suas bases, e as pessoas que o formam. Waters procurou demonstrar como cada fator influenciou a vida do personagem, e como pode influenciar a vida de cada um de nós. O Governo e a guerra lhe tiraram o pai, sua mãe aprofundou seu isolamento com sua superproteção, a escola alienou todos a sua volta, e a mulher o traiu por causa do desinteresse que, por sua vez, foi gerado pela revolta contra os fatos acima citados. Tudo o empurrou para o isolamento.

Para Floyd, o mundo estava errado. Mas para o mundo, quem estava errado era Floyd. Ele era o isolado, o diferente, o louco.

Quantas vezes isso não ocorre na nossa vida: enquanto nós podemos ver claramente inúmeros erros grotescos na sociedade, e nas pessoas, quando vamos falar com estas pessoas sobre o que está errado, quem acaba se passando por alienado somos nós mesmos. O próprio Roger Waters foi taxado de depressivo pela crítica por causa do THE WALL. Isso ocorre pela primeira vez geralmente logo na idade escolar, onde já podemos enxergar as diferenças entre nossos colegas.
Daí, quando nos vemos diante de um dilema como este, nosso instinto acaba tomando uma decisão, de nos juntarmos aos alienados ou não. Se o nosso instinto acatar a segunda opção, o muro começa aí, e só vamos nos dar conta dele bem mais tarde...

Quebrar o muro significa mudar o mundo, para que não precisemos mais ficar isolados dele. Mas isso é muito difícil, Floyd não conseguiu. Ao invés de ele quebrar o muro, a sociedade é que o derrubou. Ter o muro derrubado significa ter suas idéias expostas e ridicularizadas pela sociedade, a voltar a ser chamado de “alienado” pelas pessoas que se julgam normais.

A Obra só terminou realmente com The Final Cut que é mais ou menos os restos de The Wall que Dave achava desnecessário, que fala mais sobre a Guerra e o sofrimento de Roger pela morte de seu falecido pai. Mas essa já é outra História.

Então, o que devemos aprender com THE WALL ?

A verdadeira mensagem está naquele menino que aparece no final do filme, que joga a sujeira fora da garrafa: talvez não precisemos nos isolar do mundo para tentar mudá-lo, mas sim, limparmos a sujeira de nossos corações e seguir em frente. Temos que quebrar os tijolinhos que aparecem no dia-a-dia constantemente, e não deixar que eles formem um muro enorme.

E você já reparou que, com todo o seu sofrimento, Floyd não disse uma palavra contra Deus? Pois é, se o muro te cerca pelos quatro lados, a saída está lá em cima. Sempre.

Agradecimentos à "The Wall Home Site" e a Edilson Costa de Castro.



Fonte: The Wall - Uma obra de arte conceitual - Matérias e Biografias http://whiplash.net/materias/biografias/000242-pinkfloyd.html#ixzz24tNSH2sc